sábado, 5 de março de 2016

Linda-a-Pastora, algumas recordações da minha terra

Há muito tempo que eu tenho tentado sentar-me a uma secretária e escrever sobre a minha terra, Linda-a-Pastora, uma pequena aldeia do concelho de Oeiras, sita a escassos quilómetros da capital, Lisboa.
A falta de tempo, por um lado, e que é sempre uma má desculpa, ou talvez um afastamento querido da atividade de escrita ao sabor da pena, têm impedido a concretização dessa vontade e isto sim, posso afirmar, é uma vontade, firme, decidida. Faltava o quando. Chegou agora, ainda que por pequenas partes que, diariamente, vou revendo, reescrevendo, aditando ali, cortando aqui...
O último assomo dessa vontade ocorreu quando, numa página do Facebook sobre Linda-a-Pastora (https://www.facebook.com/groups/106058772750069/), o meu conterrâneo e grande ativista empenhado na defesa dos interesses de Linda-a-Pastora, José Manuel Isidro, lamentava a pouca sorte da nossa terra por nos terem tirado talvez o único sinal de modernidade que ainda existia naquela aldeia: a caixa de levantamento de dinheiro, o multibanco...
Pensei, quando vi tal publicação, que seria o momento ideal para dar a conhecer a minha terra, as recordações que tenho, algumas memórias de infância, da qual saí nos idos de 1984, mas o local de nascimento é como uma raiz, dificilmente se arranca nem da memória.
Como dizia o Zeca Afonso "não há machado que corte a raiz ao pensamento", neste caso, há uma impossibilidade - repito, impossibilidade - de mudar esse facto como seja o lugar onde se nasceu e daí que todas as nossas memórias nos acompanhem para onde quer que vamos, sem as podermos, de modo algum, arrancar. 
Eu nasci, no dia 11 de janeiro de 1959, em Linda-a-Pastora, na casa dos meus pais, ali, na Travessa do Carambola...
Posso afirmar que foi uma infância feliz.
Curiosamente, uma das minhas primeiras memórias de infância levam-me ao local de onde foi retirada a caixa que dá, a quem lá tiver, dinheiro. Dava, pois retiraram-na sabe-se lá porquê.
Teria talvez 4 anos, sentado nos degraus de acesso à casa do meu tio José que, de pé partido devido a um acidente de mota, assistia, e eu com ele, à movimentação de terras na Quinta da Mirabela, no que, mais tarde, viria a ser a Cirel - o primeiro pólo de desenvolvimento da aldeia.
Outros se seguiriam, no mesmo local, mais tarde, depois do desaparecimento da Cirel mas com o mesmo destino fatal: o encerramento e, com ele, morria também a esperança de renovação de Linda-a-Pastora.
Também por essa altura, recordo-me de frequentar, desde os 4 anos, a "escola" do Sr. Moreira.
Aos 7 anos, a entrada para a escola primária de Linda-a-Pastora, que se situava mesmo ao lado da casa do meu tio José, um ano na escola de cima, por contraposição à outra, que se situava na cave do prédio da Rita, mais abaixo. 
Guardo ainda os três livros que me foram oferecidos por ter sido considerado o melhor aluno, A Resina, e dois volumes de A Matemática Não É Difícil. Não sei se concordo...
Claro que esses edifícios ainda hoje estão de pé, em bom estado, o que vai sendo cada vez mais raro no centro histórico da aldeia que deixou de ser minha há muito tempo.
Apenas as recordações - outra coisa que não se pode arrancar, mudam connosco, mas não nos deixam. Colam-se na memória longínqua, o tempo corre e avança, as memórias permanecem.




Foi aqui a minha 1.ª classe, atualmente, o 1.º ano, depois os três anos seguintes, na escola de baixo, aquela a que todos chamavam, penso eu a esta distância e era dela que assim falava, como "a escola da Rita" por ser a D. Rita a dona do prédio onde aquela estava instalada.
Os intervalos eram passados na rua, sempre que o tempo permitia.
Os automóveis eram quase uma miragem.
Entre a escola, o Sr. Moreira e a igreja, assim era, assim foi, até uma determinada altura, a minha vida em Linda-a-Pastora.
Lembro-me dos meus dois catequistas, o Ermelindo, que morava na minha rua (na minha rua! tão somente na mesma rua que era nossa, era de todos) e cuja morte prematura do seu pai, no dia em que fiz 6 anos, marcaram-me profundamente (por ser o dia do meu aniversário e pelas relações familiares que tinha com a minha vizinha Augusta e o Adelino, do choro compulsivo a que assisti, quando da notícia da sua morte, imagem que não esqueci) e o Emídio José.
O Emídio, brilhante médico, que cedo rumou a Coimbra onde obteve a licenciatura naquela academia, ajudou a fazer a minha transição da escola primária para o ciclo preparatório. Participou, tal como, de forma determinante, o Sr. Moreira, na minha formação, este desde os meus 4 anos. Mais tarde, seria a Zé a participar também e significativamente na minha formação enquanto estudante (cábula...).
Estas três pessoas sempre recordarei com imensa estima e enorme consideração, infelizmente, o grande, enorme, Sr. Moreira deixou-nos mas não, nunca, enquanto eu conseguir ter memória, me esquecerei dele. Grande em tudo, no físico, no caráter e na personalidade.
Afinal, naquela altura, sem eu saber, tinha ali, perante mim, alguém que fora um dos combatentes lusitanos na 1.ª Guerra Mundial. La Lys...
A minha vida aí era então, a escola, o Sr. Moreira, e já na 4.ª classe, as explicações do Emídio, onde assisti algumas vezes ao funcionamento dos teares da pequena fábrica doméstica do seu pai, sempre acompanhando a vida da igreja onde me recordo de ter, algumas vezes, servido como ajudante.


Até aos 10 anos, tudo se passava com a maior normalidade da vida de um menino de uma família tradicional numa aldeia próxima de Lisboa mas que, ao tempo, a cidade parecia-nos tão distante.
Recordo-me de, semanalmente, aos domingos (curiosamente, só me lembro de isso acontecer aos domingos), pelo meio-dia, ouvir a sirene dos bombeiros e o ritmo que esse toque imprimia à vida doméstica. 
Associava-se à proximidade da hora do almoço, o frango assado no forno, o cozido no inverno ou a dobrada, o bacalhau à Gomes de Sá que a minha mãe tão bem fazia, o arroz doce e o pão-de-ló.
Parece que ainda sinto o cheiro desses cozinhados...
Outros momentos de recordações felizes reconduzem-me às festas de Nossa Senhora da Conceição da Rocha, última semana de Maio, a entrar por Junho. 
Na altura, era um grande acontecimento e recordo-me de, sentado à porta do meu avô, na avenida, assistir à romaria de pessoas que passavam por ali em direção à Rocha ou no regresso a suas casas, depois da festa, mais espaçadas no número de pessoas e até pela hora tardia do seu regresso a que eu já não assistiria.
Mais tarde, era eu que, com a minha prima Luísa, seguia à procura das voltas no carrocel, dos choques entre os carrinhos, das farturas...
Nas noites de verão, os habitantes sentados às portas de suas casas, aproveitando os degraus ou em bancos improvisados, a ausência de automóveis permitia que nós, os miúdos de então, usássemos a estrada como campos de futebol e também como pista para corridas de bicicleta.
Também era frequente participarmos no jogo da apanhada ou das escondidas, livres, em plena rua, durante a noite, onde não havia perigos nem medos. 
Não vivíamos em redomas, o tempo não era de fast food, nem se sabia, por cá, o que isso era.
Quando a sede apertava era no chafariz junto à igreja que matávamos a sede, atirando pedras para dentro do tanque quando se queria pregar uma partida a algum sedento mais incauto, molha certa e toca a fugir o mais depressa que fosse possível.















Foi assim que, numa manhã de verão, em férias escolares, tive um acidente quando choquei com a minha bicicleta no carro da Aurelina e do marido, irmã e cunhado do Emídio, parti os óculos que usava, a cabeça também, a roda da frente da bicicleta quase se colou à de trás e o risco no Alfa Romeo provocado ou pelos óculos ou por alguma parte metálica da bicicleta...
Sim, jogava-se a bola na rua, nas traseiras do quartel dos bombeiros, pedras serviam de traves de balizas, a fuga era certa e a correria desordenada quando alguém gritava "olha a ramona".
Por vezes, o campo de futebol, era o adro da igreja, a porta, uma das balizas, a outra era alinhada, mais ou menos em frente, mais ou menos com a mesma dimensão, no extremo oposto. Por vezes, um pontapé com mais força levava a bola, rua direita abaixo.
Hoje, os assaltos, o vandalismo, encerraram a igreja atrás de umas grades feias, inestéticas mas que vão cumprindo a sua missão.
Eu, o Rui Silva, o Pedro Zé, o Armando, irmão da Liliana, o Luís Fernando, que cedo nos deixou, outros seguramente que a memória já não alcança saltávamos do jogo da bola para as bicicletas, para a caça aos pardais, na serra de S. Miguel, onde nunca caçámos nem um pardal nem gambuzinos.




As consolas, palavra desconhecida, eram uma miragem...impossível de prever, muito longe de alguém pensar o que isso poderia ser e no tormento que se viria a tornar para as gerações atuais.
Hoje, joga-se futebol virtual, a noção de espaço perde-se, convive-se pelo skype ou snapchat ou outras aplicações para mim já desconhecidas.
Mais tarde, outro Rui, o da Cesaltina e o Jorge "do adro", fazíamos partidas de ténis de mesa no Estádio Nacional, o meio de transporte era sempre a bicicleta, atravessando o hipódromo que também foi pista de corridas de automóveis, pista de corta-mato e sei-lá-que-mais até ser hoje o que é - um campo de golfe que cortou a passagem a pé entre as margens direita e esquerda do Jamor.
Antes fora também, uma parte desse espaço hoje ocupado pelo golf, junto ao Jamor, uma pequena quinta do meu avô paterno, João de seu nome, que não cheguei a conhecer. Morte prematura, pai e tios cedo ficaram órfãos.
A única imagem dessa quinta e do que era o espaço que nós conhecemos como sendo do Estádio Nacional vi-a há pouco tempo, uma fotografia a preto e branco que o meu tio José, fotógrafo de profissão, de quem herdei a paixão, registou há muitos anos. A encosta de Linda-a-Velha, nua de árvores e de tudo, sem qualquer construção, sem nada. 
Por altura do Natal, a ceia era partilhada com os meus tios José e Emília, a mulher, alternadamente, na nossa casa ou na deles, uns escassos metros mais acima, por referência à nossa.
À luz de velas para que a noite mágica tivesse outro encanto, outra beleza, outro significado.
Escolhia-se, na mata do Jamor, o pinheiro que à noite se iria cortar para fazer a árvore e enfeitá-la, terminando com os flocos de neve que eram pedaços de algodão hidrófilo que se arremessava para os ramos dando a ilusão que se tratava de neve.
O presépio era obrigatório assim como a recolha de musgo nos muros ou o que era também mais provável nos terrenos húmidos do Estádio. Munidos de uma faca e de uma caixa velha de sapatos onde se guardaria o musgo que serviria para enfeitar os caminhos por onde reis-magos, pastores, rebanhos de ovelhas e outros animais, pequenos, em barro, como se fossem os campos de Belém, iriam ser meticulosamente colocados pela minha mãe, um espelho pequeno junto ao musgo dava a aparência de um pequeno lago.
A missa do galo, da qual só me recordo de ter ido uma vez, era o momento que antecipava a entrada dos doces, o bolo-rei, as broas...
Depois, a excitação de receber os presentes  que seriam depositados junto à chaminé, na manhã que se seguia à noite mágica, a noite mais curta e a mais bela de todas as noites para tantas crianças.
Outra figura, atrevo-me a dizer, mítica de Linda-a-Pastora, era a D. Arminda dos bolos. Recordo-me de, aos sábados, passar por minha casa e a minha mãe comprar-lhe bolos que serviriam para o lanche de sábado ou para a sobremesa do jantar desse dia. 
Fã incondicional desse ícone da música portuguesa dos anos 60, a Madalena Iglésias, ainda me lembro de ela mostrar recortes de jornais, de revistas e de fotografias da cançonetista, com todo o orgulho e carinho, diria até, devoção que ela lhe guardava.
E como não recordar os bailes no salão dos bombeiros ou a sessão de cinema, nas noites de segundas-feiras, o altifalante colocado em cima do carro que circulava pelas ruas anunciando o filme, os atores e a sinopse?
Os bailes de carnaval, nos tempos das explicações que nos era dada pela Zé, o grupo de rapazes e raparigas - e eram muitos - que se mascaravam e seguiam, como mastronços, pelas ruas da aldeia, terminando depois no baile. A máscara era um pano onde se rasgavam os olhos, o nariz e a boca, roupas largas, velhas, de homens para as raparigas usarem , às vezes, também o contrário.
Lembro-me das filhós da minha tia Luísa, embebidas numa calda que as tornavam bombas calóricas mas absolutamente deliciosas, que eram confeccionadas pelo carnaval e guardadas em grandes alguidares de barro, onde também, antes da fritura, eram amassadas.
Grande parte do que aqui relato terminaria para mim logo após a morte do meu avô Jerónimo, no dia 26 de outubro de 1969. Por sinal também, dia de eleições para a Assembleia Nacional, a morte sobreveio-lhe à porta da escola em Carnaxide, onde o meu avô ia votar, morte a que assisti com o meu pai.
Uma mudança de crenças religiosas que se viria a revelar, para mim, mais tarde, desastrosa, castradora, redutora, dominadora e impiedosa, geradora de imensas tensões entre família, famílias e amigos e vontades de um jovem a construir-se, a formar-se, a querer afirmar-se e a ganhar o seu espaço, a criar as suas asas que me perseguiu durante anos até desses grilhões me conseguir libertar, não sei se com êxito, tal a força do medo, da interiorização da culpa, do pecado e do castigo que nos passavam diariamente.
Os donos da verdade absoluta, da única verdade, os seguidores do único deus verdadeiro e vivo, trituravam jovens, cerceando-lhes, e a mim também, o maior e o melhor dom, o da vida vivida em liberdade, com as capacidades criativas a quererem revelar-se sem margens nem limites, muito menos com limitações absurdas.
Iniciava-se um período negro, de rutura quase assumida, o centro de vida transfere-se, assim como as amizades, para outros locais. 
A verdade é que, à medida que o tempo avançava, ia sentido que aquela aldeia, outrora pintada de branco, na encosta da serra e comparada por Almeida Garrett, no Romanceiro, a uma aldeia da Suiça, bonita, limpa, que ainda hoje, vista de longe, e numa fotografia recente que o António Leão recentemente partilhou no Facebook, parece manter-se igual, onde havia tudo ou quase, começava a dar sinais de distanciamento em relação ao que a juventude, ou pelo menos, alguma da sua juventude, queria e ambicionava.
Ao longe, parece tudo igual. Porém, quando nos aproximamos e percorremos as ruas, a realidade é outra, tão diferente. 
Era o envelhecimento ou o prenúncio do atraso no desenvolvimento que começou a levar muitos jovens para outras paragens? Sim, também, digo eu sem querer ter a certeza de nada, mais do que qualquer outra causa, terá sido o atraso relativamente a outros locais próximos que começaram a dinamizar-se, a adaptar-se aos novos tempos, coisa que não sucedia com a nossa aldeia.
Com a auto-estrada a sul, a serra de S. Miguel a norte, não havia muito por onde expandir, a saída dos mais novos para outras paragens, provavelmente em busca de locais mais atrativos, era o prenúncio da morte. 
Hoje, quem passar pelo povoado, não pode imaginar que ali havia comércio local, havia vida, história e histórias para contar. 
Hoje, o comércio é inexistente, difícilmente se encontram crianças na rua, as escolas fecharam há muito, não se deu qualquer tipo de renovação social e a única instituição que permanece são os bombeiros. Pelo menos, até ao dia em que um presidente da Câmara, construa um novo quartel ali em Queijas sul, que mais não é do que "Os Verdes", ou seja, em Linda-a-Pastora mas que já nem o nome parece conseguir resistir à voragem do tempo. Ou do marketing...
O caminho em terra que separa Linda-a-Pastora de Queijas, feito pelos "Verdes", o moinho em ruínas que se avistava, sinal que, noutros tempos, havia atividade agrícolas. Hoje, desse moinho, nem sinal. Restou um outro, sim, em Queijas.
Por exemplo, quem ouvir rádio ou assistir aos momentos televisivos, anunciando os constrangimentos de tráfego, é o Estádio Nacional a referência ou a localidade mais próxima, Queijas. 
Mais do que desertificada, a aldeia parou no tempo à espera de uma renovação que não aconteceu, uma renovação de mentalidades e de formas de estar na vida, uma renovação de gerações, uma reconstrução até no próprio sentido da palavra.
Parece que se sente em cada pedra que se pisa uma agonia permanente, olhamos para a aldeia e vemos um cadáver adiado, em agonia profunda.
Um lugar solitário onde apetece voltar pelas recordações mas arrependemo-nos de o fazer porque, de repente, vivemos num outro tempo que parece nunca ter existido.




É esta tristeza que sinto quando tenho de voltar, passar por estas ruas, ver casas abandonadas, ruas desertas, até mesmo a casa onde nasci e vivi, as ruas onde brinquei, parecem-me estranhas, não são as ruas que pisei, onde corri, as ruas que pululavam de gente. À noite, então, o quadro parece-me ser ainda mais aterrador.
Confronto-me com o que vejo e com o que penso, com o ontem e com o hoje, debato-me entre a alegria das recordações e a tristeza da decadência anunciada, sentida, real.
Por isso, não me surpreende que o multibanco tenha sido retirado. Foi o menor dos males, meu caro José Manuel Isidro.
Pior do que isso, foi tudo o que foi desaparecendo, ao longo dos tempos, sem nada se recuperar que justificasse a permanência ou o investimento.

Lentamente, sim, mas a cada dia é mais um dia que se aproxima do fim de um tempo que há muito acabou e que só aqueles que ali viveram ou por ali passaram insistem em querer, em lutar contra a corrente, muitos de longe, onde só voltam à aldeia onde nasceram por minutos, uma mudança que não acontece no sentido em que se desejava porque a mudança existe. A caminho do fim.



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