segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Dia de consulta

Desde há mais de dois anos que, primeiro de três em três semanas, durante oito longos meses, e depois mais espaçadamente que, como acompanhante do meu pai, sou presença regular numa denominada sala azul de um hospital de Lisboa.
Diagnosticado que lhe foi, em março de 2013, um linfoma, iniciou ele o seu calvário dos tratamentos por quimioterapia, internamentos, a que se sucederam outros graves problemas de saúde ou relacionados com o linfoma ou decorrentes da idade, do envelhecimento do corpo que também (lhe) vai envelhecendo o espírito.
Olho para o meu pai e vejo a sua cabeleira, outrora farta, reduzir-se a alguns cabelos que, depois dos tratamentos, voltaram a cobrir-lhe a cabeça. Os dentes, outrora sempre cuidados e brancos, deram lugar à terceira dentição, recuperando um pouco a sua imagem depois dos tratamentos.
Acompanhando-o regularmente, sou o único cuidador possível, ciente que pouco faço, pouco posso fazer.
A consciência pesa-me? A resposta é sim, pesa-me. E eu desculpo-me perguntando-me que alternativa tinha ou tenho?
Hoje regressámos à nossa familiar sala azul do tal hospital de Lisboa, já não à dos tratamentos, agora e desde há quase dois anos, à sala de espera das consultas.
Esta familiaridade acompanha também a presença de outros pacientes que nos fomos habituando a ver, outros não já...
Ignoro e não quero saber, embora presuma, mas mesmo isso transtorna-me, a razão porque deixei de os ver. Espero que a minha suspeita não passe disso mesmo...
Em cada rosto, e por detrás dele, uma história de vida que a doença quer interromper.
Mulheres que acompanham maridos e o contrário também, filhos que acompanham os pais, familiares ou amigos que acompanham aqueles que lutam desesperadamente para adiar o que é certo para todos nós e que todos nós desejamos que não seja doloroso mas nem isso escolhemos como não podemos dizer ao nosso cabelo para crescer um centímetro.
Revistas sociais servem para atenuar os momentos de espera, momentos que podem chegar a ser horas, mulheres fazem crochet, falando entre si.
Palavras de esperança, de conforto, de ânimo, palavras que instigam à luta pela vida, contra a morte.
Todos estamos, afinal, no mesmo corredor sem o sabermos, a vida não escolhe nada, a morte vem quando se espera e quando não se espera.
Médicos passam nos corredores, trajando as suas batas brancas que os distinguem dos demais funcionários dos hospitais, hierarquizados pela cor das fardas, estetoscópio à volta do pescoço, falando descontraidamente entre si enquanto passam, indiferentes, pelos pacientes e acompanhantes que se encontram na sala ou no corredor.
Outros pacientes passam, deitados em macas, pelo corredor, semi-nus, rostos fechados, manifestando dor, outros pouco expressivos.
Naquela sala azul, distinguem-se bem os pacientes e os acompanhantes. Lenços na cabeça, ocultando a ausência de cabelo, a cor da pele daqueles cujo estado de saúde não pressagia nenhum final feliz.
A espera permanece, refiro-me também à consulta, razão de ser da minha presença ali...
Funcionários entram e saem, rapidamente, uns despedindo-se dos colegas com um seco e apressado "até amanhã".
Através do intercomunicador outro paciente é chamado à sala de tratamentos, ninguém para as consultas.
Esperar parece ser a palavra de ordem.
Esperar para quê e porquê?
Enquanto há vida, há esperança e isso parece alimentar a força de cada um para prosseguir o seu combate, como se se ouvisse o rufar dos tambores, ao longe, no meio da batalha, e a esperança ou a força de vida redobrasse.
"Ai que vida!" - oiço da voz de uma mulher, lenço na cabeça, depois de se ter dirigido ao guichet e vinda da sala de tratamentos pretendendo falar com a sua médica.
Delicadamente, funcionária mandou-a esperar.
"Que remédio!" - disse - "eu espero".
Ela e todos os que ali estavam, mas ela pior.
Também elegantes delegadas de informação médica aguardavam para anunciar os seus produtos, distinguiam-se dos demais, estão sozinhas, impecavelmente bem vestidas, malas grandes.
A sala azul vai ficando cada vez mais cheia com o passar do tempo, os sussurros quase se convertem em vozearia devido à exiguidade da sala, ainda que não seja fechada.
De repente, deixando de olhar para a revista social que segurava nas mãos, o meu pai olhou para o seu lado direito e questionou-me:
- O que é isso, um diário?
Sorrio.
Ele sempre soube da minha apetência pela leitura e pela escrita.
Respondo-lhe:
- Não, pai, não é.
Não, não é um diário, é apenas o relato, a observação, de mais um dia que passámos juntos na nossa sala azul do hospital.