quarta-feira, 11 de novembro de 2015

A carta

Enquanto procurava por documentos do meu pai, agora que cada vez mais sou o seu cuidador e o seu gestor, revirando a sua casa do avesso, encontrei na mesa de cabeceira que compõe o seu quarto um envelope.
Era um envelope, outrora branco, agora amarelecido pelo tempo, com sinais evidentes de traças que ali encontraram qualquer coisa que as satisfizesse.
Por fora, datilografado, no canto superior esquerdo, o nome do remetente.
Ao centro, como era habitual, o formal "Exmo. Senhor" a que se seguia, logo abaixo, o nome do meu pai. 
Não, não tinha endereço, fora entregue em mão ao destinatário, não sei se diretamente se por interposta pessoa que, ao tempo, só poderia ser a minha mãe.
Por momentos, parei, segurando o envelope nas mãos.
Lembrava-me bem daquela carta que escrevera ao meu pai, numa altura em que as nossas relações estavam longe de ser as melhores.
Enquanto olhava para o envelope, naturalmente já aberto, revi, em breves segundos, a minha vida naquele longínquo ano de 1985 e recordei-me das razões - para além da evocação do seu aniversário - que me levaram a fazê-lo.

Lisboa, 19 de Março de 1985

Pai:


São já alguns os anos percorridos e espero que venham a ser muitos, muitos mais os que te faltam percorrer sempre com saúde e paz.
Gostava de te dizer que apesar de termos algumas diferentes concepções de estar na vida são muito mais as coisas que nos unem do que as que nos separam. É pena que se olhem para essas diferenças como uma dor ou um desgosto e não como uma maneira plena de cada um de nós se afirmar na vida à sua maneira.
Creio estar dentro da razão quando digo (com uma certa ternura) que é um "defeito natural" dos pais quererem que os filhos sejam aquilo que eles gostariam de ter sido ou seguirem os passos que os pais, a bem, gostariam que eles seguissem.
A vida não pára; as pessoas também não e, por isso, não há (poderia alguma vez haver ?) duas pessoas iguais. Eu e tu jamais poderíamos ser a excepção à regra. Mesmo quando se diz "é tal e qual o pai", não é. Sempre existem diferenças que podem é não ser apreendidas pelos outros.
Esta regra não tem excepção, pois não ?
Apesar de tudo isto, que reduzido à sua verdadeira dimensão é tão insignificante, sei que temos orgulho um no outro e que existe - e existirá sempre - uma enorme solidariedade entre todos, quaisquer que sejam as condições em que nos encontremos. 
Não me esquecerei que o pouco que ainda sou, a ti (e à mãe) o devo - eis o meu primeiro agradecimento.
Que reconheço o sacrifício que desde sempre fizeste por mim, quantas e quantas vezes à custa de ti próprio, quando não, acima de ti. Também por isso deixo aqui o meu agradecimento.
Por último, o meu obrigado por tudo e que me desculpes por eu não ser exactamente o que tu gostarias que eu fosse mas olha que a diferença é tão pequena que não vale a pena alterares, por isso, a tensão arterial...
Termino como comecei: muitos anos de vida, com muita saúde e paz de espírito.
Recebe por esta um caloroso, intenso e vivo abraço deste teu filho, teu admirador discreto e (nem sempre !) silencioso...

Trinta anos passaram. Trinta anos e mais alguns meses. 
Hoje, já somos apenas dois porque a mãe deixou-nos mais cedo e mais sós, e as nossas diferenças foram as nossas diferenças e continuam a sê-lo, serão sempre.
Desculpa, pai, mas só me arrependo do que não fiz e, na altura, fiz o que achei que tinha de fazer. 
Errei? Errei, sim.
Se nada tivesse feito tinha sido pior, não conhecia o outro lado de uma vida que eu queria ou talvez apenas fosse levado a querer por razões insondáveis ou não tão insondáveis assim...
Por razões que eu sei e tu não porque não quiseste saber mas que deixaram marcas tão profundas que nem a eternidade apagará, se eu fosse eterno e não morresse todos os dias um pouco quando penso em tudo o que ficou para trás e que me marcou como se um ferro em brasa penetrasse por inteiro na minha alma.
Nenhum de nós se esqueceu disso. Eu não e, acredita, queria esquecer tudo. Talvez tu agora te tenhas esquecido por força da idade, da doença, do tempo...
Não farei nunca qualquer processo de intenções, seria tão doloroso quanto absolutamente inútil e os atos inúteis são isso mesmo - inúteis. 
Se tivesse de os fazer nunca seria a ti a quem eu atribuiria a culpa nesse processo. Também foste dele uma vítima, sem saberes ou, sabendo, calaste e deixaste seguir.
Por isso, não vale agora a pena lembrar nada.
Se eu não tivesse que procurar documentos para juntar e saber as linhas com que nos cosemos, não teria feito semelhante achado e era como se nada tivesse existido.
A ida aos baús tem destas coisas - a recordação. 
Porém, agora que a luta pela vida, em especial a tua, é feita diariamente, quero renovar os votos que fiz há trinta anos e alguns meses, numa semana em que, mais uma vez, Pai, demonstraste o apego à vida, à força que ainda transmites e que a outros vai faltando - que tenhas muitos anos de vida, se possível, mas sinto-me a pedir o impossível, com saúde. 
Era, afinal, a única coisa que eu queria mesmo reencontrar para ti, meu Pai.










segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Dia de consulta

Desde há mais de dois anos que, primeiro de três em três semanas, durante oito longos meses, e depois mais espaçadamente que, como acompanhante do meu pai, sou presença regular numa denominada sala azul de um hospital de Lisboa.
Diagnosticado que lhe foi, em março de 2013, um linfoma, iniciou ele o seu calvário dos tratamentos por quimioterapia, internamentos, a que se sucederam outros graves problemas de saúde ou relacionados com o linfoma ou decorrentes da idade, do envelhecimento do corpo que também (lhe) vai envelhecendo o espírito.
Olho para o meu pai e vejo a sua cabeleira, outrora farta, reduzir-se a alguns cabelos que, depois dos tratamentos, voltaram a cobrir-lhe a cabeça. Os dentes, outrora sempre cuidados e brancos, deram lugar à terceira dentição, recuperando um pouco a sua imagem depois dos tratamentos.
Acompanhando-o regularmente, sou o único cuidador possível, ciente que pouco faço, pouco posso fazer.
A consciência pesa-me? A resposta é sim, pesa-me. E eu desculpo-me perguntando-me que alternativa tinha ou tenho?
Hoje regressámos à nossa familiar sala azul do tal hospital de Lisboa, já não à dos tratamentos, agora e desde há quase dois anos, à sala de espera das consultas.
Esta familiaridade acompanha também a presença de outros pacientes que nos fomos habituando a ver, outros não já...
Ignoro e não quero saber, embora presuma, mas mesmo isso transtorna-me, a razão porque deixei de os ver. Espero que a minha suspeita não passe disso mesmo...
Em cada rosto, e por detrás dele, uma história de vida que a doença quer interromper.
Mulheres que acompanham maridos e o contrário também, filhos que acompanham os pais, familiares ou amigos que acompanham aqueles que lutam desesperadamente para adiar o que é certo para todos nós e que todos nós desejamos que não seja doloroso mas nem isso escolhemos como não podemos dizer ao nosso cabelo para crescer um centímetro.
Revistas sociais servem para atenuar os momentos de espera, momentos que podem chegar a ser horas, mulheres fazem crochet, falando entre si.
Palavras de esperança, de conforto, de ânimo, palavras que instigam à luta pela vida, contra a morte.
Todos estamos, afinal, no mesmo corredor sem o sabermos, a vida não escolhe nada, a morte vem quando se espera e quando não se espera.
Médicos passam nos corredores, trajando as suas batas brancas que os distinguem dos demais funcionários dos hospitais, hierarquizados pela cor das fardas, estetoscópio à volta do pescoço, falando descontraidamente entre si enquanto passam, indiferentes, pelos pacientes e acompanhantes que se encontram na sala ou no corredor.
Outros pacientes passam, deitados em macas, pelo corredor, semi-nus, rostos fechados, manifestando dor, outros pouco expressivos.
Naquela sala azul, distinguem-se bem os pacientes e os acompanhantes. Lenços na cabeça, ocultando a ausência de cabelo, a cor da pele daqueles cujo estado de saúde não pressagia nenhum final feliz.
A espera permanece, refiro-me também à consulta, razão de ser da minha presença ali...
Funcionários entram e saem, rapidamente, uns despedindo-se dos colegas com um seco e apressado "até amanhã".
Através do intercomunicador outro paciente é chamado à sala de tratamentos, ninguém para as consultas.
Esperar parece ser a palavra de ordem.
Esperar para quê e porquê?
Enquanto há vida, há esperança e isso parece alimentar a força de cada um para prosseguir o seu combate, como se se ouvisse o rufar dos tambores, ao longe, no meio da batalha, e a esperança ou a força de vida redobrasse.
"Ai que vida!" - oiço da voz de uma mulher, lenço na cabeça, depois de se ter dirigido ao guichet e vinda da sala de tratamentos pretendendo falar com a sua médica.
Delicadamente, funcionária mandou-a esperar.
"Que remédio!" - disse - "eu espero".
Ela e todos os que ali estavam, mas ela pior.
Também elegantes delegadas de informação médica aguardavam para anunciar os seus produtos, distinguiam-se dos demais, estão sozinhas, impecavelmente bem vestidas, malas grandes.
A sala azul vai ficando cada vez mais cheia com o passar do tempo, os sussurros quase se convertem em vozearia devido à exiguidade da sala, ainda que não seja fechada.
De repente, deixando de olhar para a revista social que segurava nas mãos, o meu pai olhou para o seu lado direito e questionou-me:
- O que é isso, um diário?
Sorrio.
Ele sempre soube da minha apetência pela leitura e pela escrita.
Respondo-lhe:
- Não, pai, não é.
Não, não é um diário, é apenas o relato, a observação, de mais um dia que passámos juntos na nossa sala azul do hospital.



quarta-feira, 20 de maio de 2015

Problemas de um funeral em vida...





A Vida
É um prematuro sonho
Só morre
Quem nunca viveu

(Mia Couto)










Hoje, enquanto verificava o correio que recebi, sim, ainda em formato papel, deparei, por entre contas por pagar que invariavelmente aparecem por esta altura do mês, e de um auto de contra-ordenação completamente falso no que dizia respeito à velocidade de atravessamento de uma localidade, por uma viatura supostamente em meu nome e alegadamente conduzida por mim, numa localidade com nome de Santa qualquer coisa (só por aí já seria suficientemente pouco credível que eu passasse por tal localidade) dizia eu que me deparei com uma revista de um clube a que pertenço há vários anos.
Como habitualmente, antes de a deitar para o lixo reciclável, desfolho sem grande interesse as páginas da dita revista.
Desta vez, porém, não resisti a ver com pormenor um anúncio, de página inteira, a cores, de uma agência funerária.
Desde logo, ser a cores o anúncio dos serviços prestados, já me parece um bom sinal, ainda mais, tratando-se de serviços fúnebres.
O caminho para o fim pode ser alegre, sorridente e até colorido, porque não?
Uma fotografia de um casal de meia idade, abraçados, sorridentes, encima o canto direito do anúncio. Ao lado esquerdo, a verde - sinal de esperança - os dizeres 

PAZ.
Para si e para os seus.

Depois de dar a conhecer que os sócios do tal clube a que pertenço podem beneficiar de condições preferenciais do Plano - o que é sempre bom dado tratar-se da nossa morte ou da morte de um nosso ente querido próximo ou até afastado a quem nós queiramos oferecer o tal Plano - fiquei a saber que existe um Plano.
Fico tranquilo.
Alguém, em Portugal, tem um plano ao qual não podemos fugir.
O Plano tem um nome, assaz simpático, terno, queriducho: Plano Funeral em Vida.
Pelos vistos, também é simples, flexível, vantajoso e seguro!
Primeiro, têm de me convencer a entrar para o caixão. Não vai ser fácil e nem sequer sofro de claustrofobia. É só uma teimosia minha: não entro em determinados espaços, pelo menos, de forma voluntária.
Acho aquilo um bocadinho apertado e eu, mesmo deitado, gosto de me mexer...
Logo, não poderia escolher uma parte fundamental do Plano e, como o anúncio diz que, por ser simples, vai ao encontro da minha vontade e não depende de terceiros, parece que temos já um pequeno problema: vai ter de depender de terceiros a escolha da urna onde repousarei porque eu não o vou conseguir fazer.
Diz ainda o anúncio que, por ser flexível, permite várias formas de pagamento e em qualquer momento pode alterar os serviços que contratou.
Ora bem, vamos imaginar que eu quero subscrever o plano, deixando aos meus herdeiros a tarefa de escolherem a urna, caso se entendam quanto a isso...
Eu faço o contrato, presumo que haja contrato, e havendo várias formas de pagamento, imaginemos que quero pagar o meu funeral em vida (ideia que já de si também me parece um pouquinho tétrica...) a prestações.
Só por mero acaso, imaginemos que no dia a seguir a fazer o contrato, o Senhor chama-me para uma tarefa ainda maior do que aquela que já tive na Terra e que me quer levar para a terra.
Os meus herdeiros, caso não se entendam, não vão ficar em paz uns com os outros como diz o anúncio porque, com grande probabilidade dirão "se foi ele que fez o contrato, ele que pague, sacana do homem, faz o contrato e só para não pagar, até morreu!". 
Depois alguém dirá "e um funeral social, não? sempre sai mais barato..."
"Pagas tu?" - parece que os estou a ouvir...
"Então, o homem fica aqui a cheirar mal e a incomodar os vizinhos mesmo depois de morto?"
A minha morte, no dia a seguir ao contrato, ou até no momento do contrato - o que pode perfeitamente acontecer quando souber o valor do Plano - ainda sem ter assinado o cheque, fica a cargo de quem?
A empresa responde dizendo que é seguro pois garantem a execução (!) do plano que escolheu com o cartão contrato. Garantem a execução!!! É profissionalismo...
Se não for deste modo, vai haver confusão, conflitos, logo, ausência de paz...
E também é vantajoso, parece, pelo menos assim o apregoam: protege os familiares de encargos no momento difícil e pode ser subscrito em qualquer idade.
Isto é encorajador, revela empreendedorismo. 
Pode-se subscrever PPR's, fundos de Investimento, obrigações, contas depósito a prazo com juro negativo (deve querer dizer que nos tiram o dinheiro que nós pusemos no Banco a pensar que rendia algum dinheiro extra no final do contrato mas afinal entregamos aos ladrões voluntária e livremente as nossas economias de que eles se apoderam e não restituem às vezes) - porque não subscrever um Plano Funeral em Vida? Soa bem...E como pode ser em qualquer idade, o melhor é fazer já porque a morte, como os impostos, é certa.
Tem apenas uma pequenina diferença em relação aos impostos. Estes, sabemos quando os pagamos, o IMI, o IUC, o IRS...Já a morte, pode ser a qualquer momento, não tem idade.
Por isso, não vá o diabo tecê-las, o melhor é fazer este Plano.
Para quê procurar problemas se os podemos resolver já?